Pesquisa mostra que dificuldades auditivas não tratadas podem acelerar o declínio cognitivo
Ouvir música, o som do mar, a voz de um amigo especial: são apenas alguns dos milhares de sons que o cérebro interpreta diariamente. Essa capacidade não se limita à simples identificação dos sons, mas também à atribuição de significado, permitindo uma conexão com o mundo.
Essa tarefa de interpretar o som envolve diversas áreas do cérebro, sendo o córtex auditivo a principal responsável. Embora a deterioração neurocognitiva tenha múltiplas causas, a perda auditiva não tratada é um fator de risco evitável.
(imagem desenvolvida por IA)
Um estudo publicado na revista The Lancet Public Health, com dados de 438 mil pessoas, revelou que indivíduos entre 40 e 69 anos com perda auditiva não tratada têm 42% mais chances de desenvolver degeneração neurocognitiva, quando comparados àqueles que utilizam aparelhos auditivos. Essa pesquisa, considerada um marco histórico por especialistas, reforça a ligação entre a perda auditiva e o risco de demência de Alzheimer.
A pesquisa ressalta que a privação sensorial e o isolamento social, contribuem no processo neurodegenerativo do cérebro. Outra possibilidade é que os neurônios e as vias cerebrais associados à audição e à cognição estejam diretamente conectados. Uma teoria sugere que a dificuldade em ouvir pode alterar a atividade cerebral no lobo temporal medial, o que, por sua vez, pode estar relacionado à patologia do Alzheimer.
Segundo o especialista otorrinolaringologista Henrique Furlan Pauna, o sistema neural que conecta a área auditiva ao córtex frontal é uma rede complexa que envolve várias regiões cerebrais associadas à memória, raciocínio e outras funções cognitivas. “A falta de estimulação vai causar uma atrofia nessas áreas cerebrais e também levará a uma aceleração do processo degenerativo”, explica.
De acordo com os resultados apresentados no estudo, os aparelhos auditivos não apresentam uma cura para a demência, porém torna-se a principal fonte para a reabilitação, a qualidade de vida e ajuda do paciente.
O médico geriatra Carlos Sperandio explica que a falta de estímulos cerebrais pode limitar as capacidades do nosso cérebro. “Processamos mais de um milhão de informações por segundo. Somos seres conectados ao mundo pelos sentidos: visão, audição e paladar. São eles que mantêm nosso cérebro ativo. Se algum desses sentidos é prejudicado, o cérebro se limita, restringindo seu processamento.”
A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que cerca de 25% da população mundial, ou seja, 2,5 bilhões de pessoas, terão algum tipo de perda auditiva até 2050.
O especialista Henrique diz que a maioria dos casos de perda auditiva, por conta da tecnologia e diagnóstico precoce, podem ser reversíveis.“Há muita dificuldade em introduzir o aparelho auditivo, por questão estética e por preconceito, mas é necessário o estímulo, pois a perda auditiva é reversível e melhorar a qualidade de vida, além de diminuir o isolamento social e a prevenir demências como a de Alzheimer”.
O estudante de 20 anos Guilherme de Cássio tem perda auditiva severa moderada desde os 4 anos e conseguiu usar um aparelho auditivo apenas aos 7 anos. “Era muito caro comprar um aparelho e pelo SUS era uma burocracia e não conseguimos na época, consegui usar porque uma tia que mora em Portugal trouxe pra mim”. O estudante ainda explica que não conhecia a relação auditiva e demências. “Eu não tinha ideia de que a perda auditiva poderia desenvolver demência, não é um assunto muito falado”.
No Brasil, por meio do Sistema Único de Saúde (SUS), disponibiliza aparelhos auditivos gratuitamente para a população, entretanto esse processo pode levar meses até mais de um ano. Os custos em rede particular podem variar de R$ 2.000 até R$ 20.000 ou mais para um par de aparelhos dependo do modelo.
Os dados da pesquisa concluíram que o tratamento da perda auditiva com aparelhos auditivos em idosos é eficaz na redução do risco de demência, equiparando-o ao de indivíduos sem problemas de audição.
Como a perda auditiva pode contribuir para o Alzheimer?
Os estudos mostram que pessoas com perda auditiva tendem a se isolar socialmente, evitando situações em que a comunicação seja difícil. Essa falta de interação social pode afetar negativamente as funções cognitivas e aumentar o risco de desenvolver demência.
Outro fator relatado é o esforço cognitivo para compensar a perda auditiva, o cérebro precisa fazer um esforço maior para processar as informações sonoras. Esse esforço constante pode levar à fadiga cognitiva e, a longo prazo, contribuir para o declínio cognitivo.
Primeiros passos da perda auditiva
O especialista Henrique diz que os primeiros sinais de perda auditiva podem ser sutis e muitas vezes passam despercebidos “geralmente são os familiares que percebem os sinais que são TV alta, não ouvem a campainha, mas existem dos sintomas mais comuns”. Os sintomas variam de acordo com cada indivíduo, entre ele estão:
Dificuldade em entender a fala, especialmente em ambientes ruidosos: É comum ter que pedir para as pessoas repetirem o que falaram ou aumentar o volume da televisão.
Zumbido nos ouvidos: um som persistente, como um zumbido, assobio ou chiado, pode indicar a presença de perda auditiva.
Sensação de isolamento: A dificuldade em se comunicar pode levar a um sentimento de isolamento social.
Necessidade de aumentar o volume do rádio, televisão ou outros dispositivos de áudio: Se você precisa aumentar o volume mais do que outras pessoas, pode ser um sinal de que sua audição está diminuindo.
Prevenir é cuidar
Especialistas orientam que se houver uma suspeita de perda auditiva, é importante procurar um médico otorrinolaringologista. “Não espere chegar a perder 100%, fique alerta aos sinais e procure um especialista”, orienta Henrique.
É importante ressaltar
A perda auditiva não é a única causa do Alzheimer.
O Alzheimer é uma doença complexa com múltiplos fatores de risco.
O tratamento da perda auditiva pode ajudar a prevenir o desenvolvimento da doença de Alzheimer ou retardar sua progressão.
Fonte:
Jennifer A Deal, Nicholas S Reed: Saúde auditiva e demência. thelancet. 2023
Prevenção, intervenção e cuidados com a demência: relatório de 2020 da Comissão Lancet
SUS oferece assistência integral para pessoas com deficiência auditiva
Reportagem: Giovanna Retcheski